Carta aberta ao criativo ansioso
Quando andamos de crise de identidade em crise de identidade, como saber quem somos na verdade?
Vou começar pelo elefante na sala. Passei um verão inteiro sem escrever. Nesse período, umas boas dezenas de pessoas gentis subscreveram esta newsletter e agora, ao receberem esta edição, olharão confusas para a caixa de e-mail e perguntarão Que mulher é essa? Mais do que uma canção belíssima da cantautora sadina A Garota Não, é uma pergunta legítima.
Antes que cancelem esta subscrição, permitam-me que vos conte um bocadinho sobre mim, em jeito de apresentação. O meu nome é Rafaela Mota Lemos. Desde 2006 que tenho tido um cantinho na internet onde escrevo. Primeiro um blog, depois uma rede social, depois outra rede social e, agora, uma newsletter. Escrevo sobre ideias que me ajudam a mastigar aquilo que observo e que vivo, na esperança de que sejam interessantes, façam pensar ou entretenham alguém. Isso mesmo, entreter. Não estou aqui a salvar vidas ou a habilitar-me a um Nobel.
Trabalho a tempo inteiro num emprego das 9 às 5 em escrita e estratégia de conteúdos. Estudei para ser tradutora, atividade e arte que me acompanha até hoje, como segundo emprego. Tenho uma boa vida em Lisboa e são muitos os interesses criativos que me dão vontade de me levantar de manhã: sou apaixonada por livros, revistas independentes e conversar com pessoas. Algures no meu futuro existirá uma revista, um livro, uma loja ou um talk-show. Ou um espetáculo de variedades itinerante, que é a melhor forma de descrever a minha cabeça.
Por algum motivo que ainda não descortinei, aprendi a associar a ideia de realização pessoal àquilo que faço para viver. Eu sei que isto não é novidade para a maioria de vós, claro. Crescemos com métricas de sucesso muito específicas e iguais às das outras pessoas: tirar um curso superior, arranjar um bom emprego, ganhar um bom salário, não depender de ninguém, ter ambições, sonhos e projetos, cada um na sua categoria bem definida, cada qual com o seu prazo e plano meticulosamente delineado, porque, como dizem os gurus da produtividade, um objetivo sem um prazo é apenas um desejo.
Se nem todos escolheram ser médicos ou engenheiros, porque essas é que são profissões a sério, é nosso dever honrar o sacrifício que os nossos pais fizeram ao nos pagarem as propinas da universidade, a renda de um quarto se morámos longe de casa e fazer o favor de pormos pão na mesa e, com sorte, sentirmo-nos contentes com o trabalho que fazemos. Concedo que talvez este raciocínio não ocorra a todas as pessoas. Mas ocorre-me a mim.
Fui a primeira pessoa na minha família, seja do lado materno ou paterno, a ir para a universidade e sei que é um privilégio eu ter podido escolher aquilo que eu estudei. E ter feito o estágio no Rio de Janeiro. E ter podido ir para Milão fazer Erasmus e aprender outro idioma e ter tido ali as primeiras experiências profissionais.
Quando em 2012, já em Lisboa, me despedi do meu emprego seguro para me tornar freelancer, senti-me profundamente realizada. Era o pináculo da liberdade para mim. Com apenas 5 anos de vida ativa para trás, a ideia de poder gerir o meu próprio tempo, de aceitar os trabalhos que eu queria e recusar os que não queria, sem ter um chefe que mandasse em mim, era um luxo.
Fui a primeira freelancer do meu círculo de amigos e, por algum motivo, assumi que devia servir de exemplo de como viver aquele estilo de vida à grande e à francesa. Quando os meus amigos andavam a enviar currículos para novos empregos, a fazer avaliações de desempenho, a subir na escada corporativa, a aprender a gerir relações políticas nos seus trabalhos, eu andava a traduzir e a escrever, sem qualquer perspetiva de evolução profissional ou sem objetivos concretos para alcançar. Adoro traduzir; na altura traduzia livros de banda desenhada da Disney, manuais de máquinas de café ou bulas farmacêuticas e criava conteúdos para uma plataforma digital. Para mim, o trabalho sempre teve um cunho de diversão. Conciliava tudo isto com os atrevimentos pessoais de fazer um programa de rádio humorístico ou de mudar-me para o outro lado do Atlântico (Rio de Janeiro e Nova Iorque) a escrever histórias sobre vida noutros lugares, num ano que me quebrou a uma série de níveis.
Mas eu era uma freelancer que estava a viver uma vida desenhada à minha medida e a usar a criatividade no dia-a-dia. Para mim, isso era sucesso. Não interessa se não tinha grande maturidade para gerir o negócio de um trabalho independente ou se não pensava no futuro.
Acho que foi nessa altura que comecei a definir-me como criativa. Sim, substantivo em vez de adjetivo. E foi nessa altura que percebi que era ansiosa.
Será que existem criativos não ansiosos?
Psst, alguém aí se acusa?
Um ansioso criativo precisa de estar sempre a fazer alguma coisa. Tudo tem de ter um porquê (damn you, Simon Sinek, com a tua teoria do Start with Why), tudo tem de ter uma estratégia, tudo tem de ter uma lição.
Um ansioso criativo eventualmente aprende a fazer as pazes com uma inquietação que está sempre presente. Com a culpa de não estar a fazer nada quando não está a fazer nada. Com o desconforto de uma vida que está ali a rolar em piloto automático.
Um ansioso criativo preocupa-se com o output constante. Porque o seu valor está ligado àquilo que faz, àquilo que mostra, àquilo que é para além das quatro paredes da sua casa - o único lugar em que pode somente existir, respirar e ficar sentado no sofá, a ver episódios repetidos de Friends e a encomendar o jantar pela Uber Eats.
E quanto às pessoas que não sentem esta urgência constante de criar? Aquelas pessoas que não têm um passion project ou uma ideia sempre à espera de ser implementada? Não, não há nada de errado com elas.
Criatividade é viver plenamente, com curiosidade, abertura de espírito e, o mais importante de tudo, alegria.
O mundo que nos impõe as carreiras impressionantes, os propósitos nobres e os milestones criativos pode tentar convencer-nos de que todos precisamos de ter um lado produtivo intenso, mas não aceito. Não subscrevo a ditadura da produtividade enquanto branding pessoal.
Há quase 3 anos que trabalho numa grande empresa, onde é natural valorizar-se um plano de carreira, aspirar uma promoção, agradecer os benefícios corporativos. Mas tem sido uma experiência que me fez abanar os pilares da minha personalidade.
Quem sou eu agora, se estou tão longe da vida livre que tinha enquanto criativa freelancer? Será que era uma vida tão livre assim? E o que faz uma vida livre? Quem sou eu agora que tenho de picar o ponto todos os dias? Quem sou eu agora que não posso fazer as malas e mudar-me para outro país na próxima semana? Onde raio fui buscar a ideia de que só tinha valor se a minha vida fosse palco de aventuras? E porque é que não estou feliz hoje? O que está a faltar? O que é que tenho em demasia? O que precisa de sair? O que precisa de entrar?
Se é o desconforto que nos faz crescer, digo-vos que já não caibo em mim.
A todos os criativos ansiosos que me estão a ler neste momento, saibam que não estão sozinhos nessa aflição bamboleante entre o ser e o fazer. Andamos todos aqui a tentar perceber como é que isto funciona.
Daqui ansiosa para ansiosa (já criativa não me tenho sentido muito ultimamente): não estás sozinha. Gosto de pensar que são momentos como este, de desconforto, que precedem as boas mudanças. Quem sabe? Seja como for, é sempre bom ler-te 😊
Eu tenho “um emprego a sério” e infelizmente a regra da produtividade constante também mora aqui. Uma pessoa nem sabe passar um sábado descansado sem sentir alguma forma de culpa. Devia ter feito mais uma máquina de roupa, devia ter lido mais um livro, devia ter andado mais… A grande questão agora é sempre “estamos a aproveitar o suficiente?”
Acho que não sabemos apenas ESTAR.