Ser freelancer: os medos existenciais de que ninguém fala
O que está para além da liberdade de poderes trabalhar num café todos os dias e de não saberes quanto vais ganhar no próximo mês?
Nos últimos oito anos e meio trabalhei para outras pessoas.
Certo, eu sei que nós trabalhamos sempre para outras pessoas. Um freelancer presta um serviço. Um empreendedor resolve um problema de alguém. Um funcionário trabalha para uma empresa pequena ou grande corporação. Isso vai sempre acontecer.
Mas nos últimos anos, tive trabalhos mais… convencionais. E — embora eu odeie esta ideia do “convencional” e “não convencional”, porque, afinal de contas, que convenções são essas? Quem criou, quem disse, quem fez? Quem assinou o contrato universal do que é o normal? — é a melhor palavra que me ocorre neste momento.
E sabem? Eu sempre gostei daquilo que fazia nesses trabalhos, mas houve sempre um certo nível de desajuste. Uma sensação de “não é bem isto”.
Um bocadinho como quando passas a vida a comprar soutiens na Intimissimi, acreditando que aquele é o teu tamanho, até que um dia entras na Dama de Copas, medem-te as maminhas com rigor quase científico, ajustam as alças, explicam o suporte, e tu pensas:
Whoa, então era isto que era suposto as minhas maminhas sentirem? Este conforto? Este suporte? Esta sensação de… casa?
Pois. Eu nunca senti essa sensação de casa.
Durante esses anos, apesar de desfrutar com muito gosto de subsídios de Natal e férias pagas, pensava que gostava de voltar a ser freelancer. Não era propriamente uma novidade para mim; entre os meus 29 e 33 anos andei a papaguear pelos amigos e pela internet fora a alegria de podermos desenhar os nossos dias e o nosso trabalho ao nosso gosto. E, apesar de muita coisa ter corrido bem, também cometi uma série de erros (podemos falar disso numa próxima edição – tenho muito material).
Mas, neste tempo todo, sempre tive alguns medos muito concretos de regressar à vida de trabalhadora independente, como a Segurança Social gosta de nos chamar:
1. O dinheiro torna-se a métrica principal do sucesso
Quando somos freelancers, o dinheiro ganha maior protagonismo. Sim, dinheiro é bom, permite-nos comprar livros, fazer brunches e viajar. E, na loucura, beber um cocktail ali no Príncipe Real.
Quando trabalhamos numa vida corporativa, o salário é um fator de satisfação, claro. Mas há outros parâmetros: o ambiente de trabalho, a relação com as chefias, os projetos em que trabalhamos, os benefícios que temos, as festas (estas vão sempre figurar em ambas as listas: nos prós e contras de trabalhar em empresas).
Para um freelancer, um bom ano passa a ser “aquele em que faturei x”, normalmente um número secreto porque Deus nos livre de falar de dinheiro abertamente uns com os outros. Um mau ano será aquele em que “não conseguimos chegar lá”.
(Um desde já obrigada a queridas colegas de freelancing como a Elsa Fernandes, a Ana Vargas Santos ou a Mónica Menezes com quem é possível falar abertamente destas coisas).
Isto transforma tudo num estilo de vida perigoso, porque parece que o valor do nosso trabalho está colado ao extrato da conta bancária e aos impostos que pagamos. E reviramos os olhos sempre que alguém disser “Se pagas muitos impostos, é bom sinal. Significa que fizeste bom dinheiro.”
2. Somos apenas prestadores de serviço
Podemos dar-lhe o nome que quisermos: projeto, missão, colaboração criativa. Mas a verdade é: estamos a executar uma tarefa para outra pessoa e somos pagos por isso.
E ninguém está preocupado com a nossa trajetória de carreira. Ah ah ah, sim, nas empresas também não. Mas todos fingimos que sim e chamamos-lhe “plano de desenvolvimento individual”. Não temos ninguém a pensar na nossa evolução, nos nossos talentos escondidos, na nossa curva de aprendizagem.
E a verdade é que, uma vez que um freelancer normalmente tem de cumprir vários papéis na sua atividade (marketing, desenvolvimento de negócio, contabilidade, perseguir maus pagadores e… trabalhar), é muito fácil que esta parte do desenvolvimento profissional fique um pouco de lado.
3. Estamos sozinhos
Sim, é maravilhoso não estar em seis calls por dia. Às vezes estou semanas sem ligar o Teams e sem ouvir aquele toque da chamada, tu-tu-tuuuuuu-tu-tuuu. Ninguém nos interrompe mesmo que estejamos a usar uns headphones que comprámos exatamente para aumentar a nossa capacidade de foco. O silêncio pode ser um céu.
Mas também não temos ninguém com quem festejar as pequenas vitórias. Não há aquele “boa!” partilhado depois de uma apresentação que correu especialmente bem, nem o copo ao fim da tarde no bar da esquina. Já não há esquina, já não há colegas.
Há um certo tipo de solidão que não vem do silêncio, mas da ausência de partilha.
Damos pouco valor às alegrias partilhadas em equipa. É um peer pressure ao contrário. É um peer happiness (ouviram aqui primeiro). Aquela felicidade promovida pelas relações que mantemos com os colegas de trabalho, pessoas com quem passamos 8 horas todos os dias, mais do que qualquer um dos nossos familiares.
E, principalmente para pessoas sociáveis como eu, é fácil sentirmos falta disso.
Pequena correção: pessoas sociáveis, não. Pessoas que querem pertencer a algum lado.
4. Os dias tornam-se líquidos
Se não tivermos cuidado com as nossas rotinas, os dias começam a diluir-se. Não há horários fixos, nem expectativas visíveis e concretas.
Além disso, é fácil cair na armadilha de “tenho o dia todo pela frente” e depois passarmos horas a ajustar cores no Canva ou a experimentar utilizar o Notion pela 3ª vez, acabando por desistir após 5 horas. (Aconteceu com uma amiga). Sem alguém a definir limites ou prazos, podemos acabar o dia esgotados sem saber o que realmente fizemos.
Além disso, a falta de sede própria para o trabalho acresce a esta dificuldade, mesmo que tenhas um espaço de cowork. Não há um local de trabalho ao qual temos de chegar a horas. Não há colegas a enviar mensagem a perguntar “Está tudo bem?” se não aparecemos. É fácil tornarmo-nos invisíveis. É fácil sentirmos que ninguém está à nossa espera.
5. Não há uma forma clara de medirmos progresso
Quando não há promoções, cargos novos, ou feedback formal, como sabemos se estamos a “evoluir”? Às vezes parece que andamos às voltas na nossa busyness, mas não necessariamente a caminhar para lado nenhum. Acho que pode surgir naturalmente uma certa ansiedade em não ter marcos visíveis, em sentir que estamos num eterno work in progress.
Mora muito em nós a ideia de que se escolheres determinado trabalho trabalho, carreira ou caminho, “vais chegar longe”. Nim. Longe é aonde vamos e não voltamos.
6. O excessivo romantismo do "trabalhar por conta própria"
O discurso público sobre o freelancing está cheio de ideias como “liberdade”, “autonomia”, “trabalhar de fato de banho numa secretária com vista para o mar”. Mas essa narrativa também mete pressão: se não estás a viver o sonho, és tu que estás a fazer mal. Parece que não há muito espaço para dizer que estamos cansados, sem parecermos ingratos por termos escolhido este caminho.
Tento contrariar isto: todas as semanas digo ao meu companheiro que estou muito feliz. Pela nova vida e por ele, mas essa parte ele já sabia.
Então, mas, ainda assim, acabei por escolher isto, não foi?
SIM! Estou a sentir um grande prazer por retomar a minha autonomia. Tenho uma grande consciência daquilo que preciso para funcionar bem, emocional e financeiramente. Tenho conseguido escolher os clientes e marcas com quem quero trabalhar e com quem sinto uma afinidade genuína.
Ainda tenho medos, alguns destes persistem. Não tenho um plano de carreira, mas tenho um ficheiro de Excel chamado "coisas que me fazem feliz e talvez paguem contas". É uma lista que cresce todos os dias.
Fui freelancer por muitos anos e fico sempre tentada a voltar. Mas, quando penso, lembro que existiam desajustes também. Essa sua newsletter parece ter descodificado os principais deles. Foi quase uma sessão de terapia e uma de consultoria de carreira juntas, entregue na minha caixa de entrada. Entender estes desconfortos é extremamente importante para podermos ajustar as expectativas e saber como lidar com eles. Estou mesmo muito feliz com essa leitura!
"Parece que não há muito espaço para dizer que estamos cansados, sem parecermos ingratos por termos escolhido este caminho."
Puxa, com esta quase me fizeste chorar. Vou dizer aqui em primeira mão: estou cansada.
Obrigada por criares espaço para isto ;)